“É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”: bairro de Alvalade, diário de bordo
"Ressalta a impressão de clareza, a nitidez dos contornos, a contenção das formas, um meado de século que perdura na decadência entristecida dos velhos snacks, com asperezas de cobre gasto, engastes de vidros glaucos, madeirames escurecidos. As lojas dos anos cinquenta, ainda com gavetões de fórmica, convivem com a sofisticação, já a roçar pelo duvidoso, das vitrinas caras, negros brilhantes, fúcsias e lilases, a desviar para o modernaço. Os lugares de fruta e as mercearias de província, os últimos sapateiros remendões a espreitar de caves, como os pontos dos antigos teatros, alternam-se com as fachadas estereotipadas dos bancos, os seus painéis carregados, chamadouro e ameaça, deslustrando, ao rés dos solos, a beleza estendida das calçadas brancas e a sóbria serenidade das portadas",
Mário de Carvalho
Alvalade - que vem do árabe al-balade e significa "lugar habitado e murado" – é atualmente uma freguesia do concelho de Lisboa, pertencente à zona central da capital. A zona onde se ergueu foi planada no século XX dos anos 40 com o "Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro" (atual Avenida do Brasil) de autoria do arquiteto Faria da Costa. “Apresenta diversas inovações no plano urbanístico, ocupação social e oferta de bens e serviços que contribuíram para uma identidade ‘moderna’ na cidade” (André et al., 2016: 8).
Nesta altura, a cidade de Lisboa necessitava de áreas para expansão, devido, não só aos movimentos migratórios durante a guerra, como também as carências habitacionais. Em simultâneo com a elaboração de um Plano Diretor Municipal, Faria da Costa cria o Plano de Urbanização (1941-44) de uma vasta área a norte da cidade consolidada que entretanto fora expropriada pelo município, plano que foi aprovado em 1945.
Assim, “Alvalade teria como característica inicial a presença de edifícios públicos que visavam reforçar a grandeza do Estado, a autoridade e a ordem; e de habitações, com a presença do tradicionalismo enquanto forma de exaltação dos valores nacionais” (Moura, 2019: 84).
O Plano Urbanístico era claramente inovador: influenciado pelos princípios do urbanismo inglês baseado em unidades de vizinhança centradas nas escolas primárias, que deviam ser alcançadas a pé a partir das habitações que serviam, contemplando igualmente princípios do zonamento funcional e uma organização hierárquica das vias e das áreas comerciais e de serviços” (André, 2016: 9). São, por isso, introduzidos equipamentos escolares, religiosos, comércio, zonas de lazer, tudo disposto e ordenado de forma meticulosa, de modo a servir um número determinado de habitantes (Prôa et al., 2009: 23).
Alvalade, sendo uma zona com alguma dimensão, foi estruturado a partir de uma rede de vias principais que, juntamente com a Avenida Rio de Janeiro e a da Igreja, fazem a divisão do bairro em 8 células, abrangendo três freguesias da cidade de Lisboa: Campo Grande (célula 1 e 2); São João de Brito (célula 3, 4, 5, 6) e Alvalade (célula 7 e 8).
A divisão das células do Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro (1945).
A nível arquitetónico foram realizados vários projetos consoante a localização e o nível social dos seus moradores: vivendas isoladas com jardim, alojamento para aluguer, habitações sociais de ‘renda limitada’, zonas também de carácter social mas de promoção privada e outras ainda destinadas ao mercado livre (André et al., 2016: 9).
Com o passar do tempo, o bairro de Alvalade tornou-se uma nova "cidade dentro da cidade" criada num momento de consolidação do Estado Novo e de estabilização económica e constitucional do país. Este bairro foi pensado e projetado para a proximidade, para o peão. Misturou uma arquitetura de regime, conservadora, com os princípios urbanísticos do modernismo, através de projetos de jovens arquitetos contestatários do regime político. Assim, tornou-se num “Bairro Moderno, que atraiu novos atores capazes de desenvolver novos tipos de sociabilidade”, como os cafés, os jardins, as pracetas. (André et al., 2016: 10). Destacam-se entre os “atores” não só os investidores, como também os residentes, por norma, jovens das classes médias intelectuais e criativas, nomeadamente, arquitetos, engenheiros, artistas plásticos, músicos, escritores, cineastas, entre outros, que, quase acidentalmente, criam as condições necessárias para o nascimento de um movimento que se baseava não só na rebeldia como também no livre pensamento.
De graúdos e miúdos a volta de quiosques onde se vendiam revistas de tricô. A Plateia, as novelas da Corin Tellado, o Cavaleiro Andante.
Passeava-se com o cão. Ia-se à drogaria Progresso pela lexívia.
Filomena Marona Beja
Num percurso por Alvalade o moderno e o tradicional ainda se cruzam e embelezam o bairro. Isso nasce na arquitetura do bairro e nos seus moradores que apareceram influenciados pela ‘onda’ de mudança sociocultural que percorreu a Europa no final da década de 1960 e atribuíam aos lugares de encontro e sociabilidade – os cafés, os jardins, as pracetas – um valor elevado. Estes espaços sofreram uma intensa apropriação pelos grupos sociais que vieram habitar o bairro, neles surgiram novas vivências e foram suporte de redes de interação, de discussão e de criação tendo contribuído para um dos pilares identificadores de Alvalade (André, 2016: 10).
No que diz respeito aos cafés do bairro de Alvalade, foram muitos os que serviram de locais de encontro, espaço de lazer, de trabalho, de namoro e de contestação. No cruzamento da avenida de Roma com a Avenida dos Estados Unidos de América, concentravam-se três dos mais inovadores cafés e pastelarias com tertúlias muito ativas e personalizadas: o Vá-Vá, o Luanda e a Pastelaria Suprema. Mas foi no Café Vá-Vá que melhor se refletiu a importância simbólica de uma tertúlia. Considerado o espaço do nascimento do ‘novo cinema português’, foi bastante frequentado por jovens cineastas como Fernando Lopes, João César Monteiro, António Pedro Vasconcelos, Cunha Telles e Paulo Rocha que, como nos conta Lauro António, no artigo do jornal Público de 25 de Julho de 2007, “morava no prédio do Vá-Vá e dele fez o plateau para um dos filmes mais emblemáticos da história do cinema português, Verdes Anos.
No Vá-Vá, muitos artigos se escreveram, muitos romances e poemas se pensaram, muitos espetáculos se montaram, muitos filmes se idealizaram, muitos quadros adquiriram cores e formas, muitos governos caíram e muitos outros se formaram à mesa de um café de Lisboa “que só fechava às 3 ou 4 da manhã” (Entrevista a Sílvia Neves, 2023).
No entanto é importante também referir que em todas as tertúlias lisboetas se comentava o que não se podia saber pela informação escrita, radiofónica ou televisiva. Além do Vá-Vá, espaços como Biarritz, Helsínquia, Nova Bagdad, Beats, Suprema, Tique Taque, Sul-América, palco de encontro com “as meninas da D. Leonor” (Entrevista a José Rato, 2023), Luanda, Tutti Mundi, “eram o nosso território”, onde os jovens andavam “em bando”, como “pardais à solta” (Entrevista a Henrique Cayatte, 2023).
Assim, estes cafés tornaram-se simbólicos lugares de encontro e de troca de emoções, que se tornaram rituais durante décadas de existência, nomeadamente numa altura em que o regime salazarista reprimia a expressividade pública da vida, tanto individual como coletiva.
Alvalade foi também o bairro do cinema. Os anos 50 trazem novos projetos dos quais se destaca a inauguração do Cinema Alvalade e Roma em 1957. Apesar de não ser o primeiro da cidade, o Quarteto, no coração de Alvalade, oferecia um conjunto de quatro salas de cinema, qua atraía jovens de toda a cidade, principalmente nos anos sessenta.
Neste contexto, João Pessoa e Costa, morador do bairro de Alvalade e ex-estudante do Liceu Padre António Vieira destacou que “os cinemas eram também pontos de encontro, para os mais jovens, apesar da censura que havia…. o grande momento era levar as raparigas ao 3.º balcão no cinema”. O cinema revelava-se não só como espaço de cultura mas também como local de encontro entre jovens.
Francisco Louçã, também antigo aluno do Liceu recorda as idas ao Cinema Alvalade, que tinha uma “única sala muito grande” e com uma programação pouco interessante. Outros cinemas frequentados pelos alunos do Liceu eram, por exemplo, o Império, o Condes, o Monumental, o São Jorge onde se viam filmes de aventuras, franceses, americanos, e alguns clássicos de grande sucesso, apesar de muitos serem censurados.
Os jovens procuravam espaços como a a discoteca Sinfonia onde adquiriam discos e livrarias como a Barata, que “era pequenina, na avenida de Roma, mas tinha um enorme armazém” e onde se podiam comprar livros proibidos (que estavam debaixo do balcão) (Entrevista a Francisco Louçã, 2023). José Rodrigues, fundador da livraria da Avenida de Roma, conta como desde cedo, aos 13 anos percebeu que os livros são “um objeto de poder, o que consequentemente, lhe deu força para vender livros “proibidos”, como forma de manifestação”.
A discoteca Sinfonia, que ainda hoje está aberta ao público, teve também muito sucesso, pois “era inovadora para a época” já que juntava música e livros e “atraía muitas pessoas, principalmente a juventude, que via a Sinfonia como uma loja diferente, já que lá encontravam aquilo que procuravam (Entrevista a Mário Rui Moreira, 2023).
A juventude do bairro de Alvalade, com espírito de abertura e formas de vida ‘modernas’, abriu caminho a que também no comércio e nalguns serviços surgissem inovações. Foi em 1972, em plena Avenida de Roma que a estilista Ana Salazar abriu a sua primeira loja, a Maçã, onde vendia roupas modernas e diferentes de tudo o que até aí se encontrava em Lisboa. O “bairro da moda” (Entrevista a Sílvia Neves, 2023) era povoado por “pessoas que se vestiam bem” (Entrevista a Iolanda santo, 2023), raparigas de mini-saia e rapazes de cabelo comprido, calças à boca de sino.
Outro dos espaços frequentados era o Complexo dos Coruchéus. Em 1971 a Câmara Municipal de Lisboa aproveitou uma antiga mansão rústica e transformou-a num espaço pioneiro na cidade destinado à instalação de vários ateliers-loja de artistas, galeria de arte e um restaurante-café que atraíam artistas e clientelas exteriores ao bairro que contribuíram para a dinamização cultural do bairro.
Em suma, Alvalade é um “bairro com vivências próprias que marcou algumas gerações” (Entrevista a José Estevão Leal, 2023) .
ACCIAIUILI, Margarida (2013). Os cinemas de Lisboa. Um Fenómeno urbano de Lisboa do século XX. Lisboa: Bizâncio
ANTÓNIO, Lauro (2021). “Vavá, a história de um café com muito cinema” in Mensagem de Lisboa, disponível em https://amensagem.pt/2021/07/16/vava-a-historia-um-cafe-com-muito-cinema-lisboa-lauro-antonio/acedido em 22 de março de 2023
ANDRÉ, Isabel; MACHADO Aquilino; SALGUEIRO, Teresa Barata (2016). “Inovação Urbana, Utopia e Artes. O Bairro de Alvalade em Lisboa” in Agora. Encontros entre a cidade e as Artes: Explorando Novas Urbanidades. Barcelona: Universidade de Barcelona disponível em https://repositorio.ul.pt/handle/10451/32508acedido em 15 de maio de 2023
BEJA, Filomena Marona (2022). Lisboa Indo e Vindo. Lisboa: Parsifal
COSTA, João Pedro (2010). Bairro de Alvalade. Um Paradigma no Urbanismo Português. Lisboa: Livros Horizonte
MOURA, Luiz Alberto (2019). Um Jardim Punk no Bairro de Alvalade: de símbolo do estado novo a Ícone do Punk Rock Português. Todas as Artes. Revista Luso-brasileira de Artes e Cultura, 2(2), pp.81-97 disponível em https://ojs.letras.up.pt/index.php/taa/article/view/6614/6167acedido em 5 de junho de 2023
PRÔA, António Pimenta; Fonseca, João Carlos; Fonseca, Paulo Veiga da (2009). Freguesia de S. João de Brito, 1959-2009. Junta de Freguesia de S. João de Brito, Lisboa
TEIXEIRA,Matilde (2022). História local de Alvalade, um estudo urbanístico de 1882 até aos anos 60 do século XX. Trabalho para a Unidade curricular: Didática das Ciências Sociais., Mestrado do Ensino da História, Universidade de Lisboa
XEREZ, Romana; FONSECA, Jaime R. S.(2019), Capital Social e redes de vizinhança nas cidades: o caso do bairro de Alvalade: Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
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