Pela rebeldia natural que caracteriza a juventude, o meio estudantil sempre foi um terreno fértil para a perceção das mudanças que estão a dar-se nas sociedades. Muitas vezes, os estudantes foram mesmo protagonistas dessa mudança estrutural e na história de Portugal isso foi evidente em vários períodos. No século XX foram particularmente marcantes as greves académicas e as chamadas “crises académicas” que colocaram estudantes universitários contra o regime, o poder político e a ordem social.
No contexto de aumento da contestação generalizada ao regime salazarista após a candidatura de Humberto Delgado (1958) e o início da Guerra colonial (1961) esses embates e lutas começaram a iniciar-se cada vez mais cedo, ainda nos meios liceais. Embora o ensino em Portugal depois do 4.º ano de escolaridade fosse ainda um privilégio de uma parte da sociedade, com a generalização e o acentuado crescimento da escolarização em massa, o número de alunos inscritos no ensino básico (atual 9.º ano) passou de 1.066.471 em 1961 para 1.444.883 em 1974 (o que corresponde a um aumento de 26%). Quando comparado o ensino secundário (que correspondia aos 6.º e 7.º anos à época) os números, sendo bastante inferiores, apontam para 8.360 e 38.898, respetivamente, o que corresponde a um crescimento de 79%.
Alunos matriculados no ensino básico (1967-2022)
Fonte: PORDATA
Esse aumento do número de alunos levou à necessidade de criação do Liceu Padre António Vieira que nasce num Bairro de classe média (cfr. “O Bairro”) que começou por absorver um vasto conjunto de mudanças de referências intelectuais, estéticas, de comportamento e de sociabilidade que marcou decisivamente toda a década. Os tempos estavam a mudar, como na canção de Dylan que os estudantes escutavam em discos emprestados uns aos outros, mas não era apenas o “gosto” que mudava. Pressentia-se uma progressiva politização (mais ou menos organizada) que ocorria em todo o tecido juvenil e que viria afetar também os estudantes do Liceu, sobretudo a partir de 68-69.
Bebiano (2003) refere que em 1965, Marthelot, presidente de uma associação francesa de professores católicos do ensino público, havia falado da situação juvenil de vários países referindo uma juventude “turbulenta e inquieta”, em toda a parte “ávida de ocupar um lugar na história, intervindo nos assuntos da cidade” e sublinha que Portugal já se encontrava entre esses países. Foi esta inquietude que caracterizou muitos estudantes que deram o seu testemunho ao EDA - Escolas à Descoberta de Abril.
O Liceu Padre António Vieira inaugurou em 1965 e as suas características de escola moderna foram assimiladas de formas diferentes por cada aluno que por lá passou. Se a informação acerca do que foi vivido é sempre filtrada pelo tempo, o que se procurou neste conjunto de testemunhos de ex-alunos foi encontrar narrativas pessoais e perspetivas da vivência do que foi, à luz atual, viver antes, durante e depois do 25 de abril de 1974. Estes alunos, do período de antes o 25 de abril, todos rapazes, chegam ao Liceu na fase de explosão de acesso ao ensino secundário imbuídos desse espírito do tempo e “uma espécie de emancipação geracional” (Gomes e Ó, 2023: 17).
Pode verificar-se que a agitação estudantil vivida nem sempre foi organizada, mas muitos dos antigos estudantes que partilharam o seu testemunho revelam um olhar mais ou menos comprometido com a realidade social e política da época, uma vontade de participar e mudar a ordem das coisas. “No nosso tempo discutimos situações de âmbito social, económico, desportivo de forma franca” e o tema da guerra colonial era efetivamente marcante, “pois conhecia colegas mais velhos que fugiam para os países nórdicos” (Entrevista a José Viana).
Nem todos os estudantes do antigo Liceu Padre António Vieira partilharam da mesma vivência e da mesma forma de luta. Elísio Summavielle refere “Eu era um bocado rebelde e aqui mostrava essa inquietação com os colegas nas turmas, não havia muita motivação política” acrescentando depois que com o seu amigo Teotónio Pereira “dizia mal do regime”. Quando chegou ao 3º ano do Liceu, começou a por questões “e havia um diretor de ciclo complicado, rigoroso, o reitor Serpa Neves era simpático e afável”, pelo que nas férias da Páscoa o diretor de ciclo chamou os pais e o convidou “a sair” e assim, teve de mudar de escola. Na génese está o facto de nunca colocar o cinto da Mocidade Portuguesa, contrariando de forma simbólica, uma imposição e um dever.
Embora não tendo ainda uma estrutura orgânica os alunos convergiam na ideia de um ensino aberto a todos, pela igualdade de oportunidades, com métodos pedagógicos que não cerceassem o espírito crítico, que afastassem a obrigatoriedade de cumprimento de obrigações militares e religiosas. As preocupações giravam fundamentalmente em torno da falta de liberdade, da guerra colonial, do tradicionalismo das instituições, mas pontualmente também sobre outros assuntos. “Discutia-se abertamente”, esclarece o Major General Estêvão Leal, para quem a influência do exterior, nomeadamente da Cidade Universitária terá sido fundamental para o movimento.
Ainda nas palavras deste ex-aluno a guerra colonial foi o tema de facto fraturante, quer no seio da sua família, quer na sociedade portuguesa e recorda o festival de Jazz em Cascais como grande momento em que se faz manifestamente uma contestação à guerra. Também Francisco Louçã viveu na primeira pessoa o conhecido episódio da Capela do Rato quando tinha apenas 16 anos.
O ex-aluno criou com colegas um grupo de luta contra a guerra e contra a ditadura que reunia com cuidado em casa uns dos outros, teve o apoio de um padre amigo que facultava as reuniões numa sala do centro paroquial, o “lugar mais protegido de todos”, assevera.
De facto, foi muitas vezes junto de elementos da Igreja Católica, nomeadamente padres que lecionavam no Liceu Padre António Vieira, que estes alunos encontraram estímulo e proteção. O Padre Armindo Garcia, referido uma e outra vez, foi tido como um professor e homem marcante, o Padre Alberto Neto e o Padre Max, foram sucessivamente referidos pelos ex-alunos.
A criação do MAEESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa) foi um momento fundamental para esta ação estudantil ganhar um pouco mais de orgânica. Fundado em 1967 na sequência da desagregação da Comissão Pró-Associação dos Estudantes do Ensino Liceal de Lisboa (CPA dos Liceus). “O MAEESL surgiu como forma de reagrupar um conjunto de estruturas e de iniciativas, ligando-as num primeiro momento à organização dos clubes e das comissões de finalistas que tinham uma história de conflitualidade com as autoridades liceais” (Gomes e Ó, 2023: 20). Mas é sobretudo a partir de 1970 que se inicia “um processo de refundação do movimento que reafirmará os seus objetivos e princípios” debatendo-se com a falta de democracia nas escolas, a questões de seleção, a pedagogia autoritária e elitista, a falta de liberdade de informação e reunião. Em suma, a tomada de consciência sobre o ensino classicista, a política colonial e o aparelho repressor do Estado são os três temas-chave de atuação do MAEESL. Já desde janeiro de 1972 existia a UEC (União de Estudantes Comunistas), mas grande parte da intervenção nos liceus terá sido inicialmente feita à margem da estrutura que então se encontrava a afirmar nas universidades.
O MAEESL rapidamente se espalhou pelos liceus da Grande Lisboa e também em algumas escolas Técnicas e Comerciais. Editava o jornal Intervalo e o boletim interno Ao Trabalho. Em quase todas as escolas, e dinamizados pelas diferentes tendências estudantis, apareceram inúmeros jornais e boletins que os antigos estudantes do Liceu Padre António Vieira ajudaram a redigir, a policopiar ou a distribuir.
Henrique Cayatte recorda-se que distribuía panfletos com os colegas, feitos a stencil e de que alguma forma “lhe iam parar às mãos” e corrobora os temas abordados neles, bem como nos jornais que eram feitos de forma inorgânica: “movimento associativo; direitos e deveres dos alunos; denúncia de coisas de polícia; de professores que tinham comportamentos impensáveis”.
Um desses exemplos era objetivo onde, por exemplo, se apela a uma concentração marcada para 27 de março de 1973 contra a suspensão de colegas, pela liberdade de informação e pela liberdade de reunião.
Elísio Summavielle colaborou no Intervalo e além da escrita do jornal faziam-se comunicados. Recorda o dia em que na Faculdade de Medicina houve uma rusga da PIDE e foram todos presos para o Governo Civil, sendo libertado pelas 2 da manhã depois de lhe raparem a cabeça, “um troféu antifascista”, recorda.
Episódios semelhantes são recordados pelos colegas.
José Rato, estudante finalista do Liceu, recorda-se de numa reunião dos liceus haver uma invasão da polícia e os estudantes acabarem presos, aspeto que demonstra bem a repressão do regime.
Um dos órgãos da delegação do MAEESL é o Boletim, que tinha o objetivo expresso de consciencializar os alunos “em relação aos problemas concretos e específicos do nosso liceu”, segundo Elísio, que recorda os professores “Pinacóide”, “Cura Cruz”, os debates em torno dos métodos pedagógicos e de avaliação, as condições dos laboratórios e balneários, o código de vestuário.
Também no referido jornal Objetivo, no suplemento 1 do ano letivo 73/74 é referida a satisfação de o “Licas” e o “Barriga de Alcatrão” terem abandonado o Liceu e dado o alerta que alguma abertura por parte de novos professores “ditos liberais que se mostram desde o primeiro dia de aulas todos dialogantes e simpáticos” pode na verdade constituir um perigo por pretender “detetar os alunos mais perigosos” e “quebrar a sua luta”.
Atribuir alcunhas a professores, era, aliás, uma das formas de escárnio encontradas pelos alunos, mas que pode ser também considerado um ato de rebeldia. O “Shelltox”, o “Careca Megalítico” foram também alguns dos nomes criados. Da mesma forma que realizar em Geografia um estudo sobre a Checoslováquia daria direito a José Viana a ser convidado a sair da escola.
Outras formas de luta foram mais inócuas como as greves de silêncio em solidariedade por um colega de turma ter sido expulso da aula e suspenso.
Naquela madrugada em que emergiram da noite e do silêncio muitos estudantes foram apanhados de surpresa. Souberam-no pelos pais, por telefonemas de amigos, uns deslocaram-se ao Chiado, outros ficaram a aguardar que as coisas se decidissem. Muitos mencionam a manifestação do 1.º de Maio no Inatel (antiga FNAT) que juntou milhares de pessoas. “Um momento glorioso, que quem viveu, não esquecerá” diz a antiga aluna e agora professora da Escola Padre António Vieira, Antónia Honrado.
Eduarda Ferrão é uma das mulheres que pode ir para o Liceu Padre António Vieira depois do 25 de abril. Uma das primeiras imagens do espaço escolar é o registo de uma manifestação no Liceu Padre António Vieira a 12 de maio onde se podem ver centenas de rapazes e raparigas em convívio, a discursar com megafones, a fumar, em liberdade, respirando o novo ar de abril.
Posteriormente o movimento estudantil conheceu alguns momentos de crispação, condizentes, aliás, com a agitação do PREC. Às Reuniões Gerais de Estudantes seguiram-se as Reuniões Gerais de Alunos e o ambiente por vezes foi de grande hostilidade.
Eduarda Ferrão, era aluna do Liceu Rainha D. Leonor e diz não se recordar dos temas tratados pois “eram muito abrangentes” e recorda-se de estudantes serem barrados de entrar na escola “devido à consciência política”. Eduarda diz que teve uma participação ativa que durou até a faculdade, em reuniões secretas de esquerda que eram realizadas na casa de uma amiga mais velha onde faziam folhetos, sobre as primeiras eleições, e conseguiu ver como eles funcionavam.
José Viana recorda também esses tempos extremados que Portugal viveu e que se sentiram no Bairro e no prolongamento da escola.
Carlos Batista era então estudante do 7.º ano recorda-se que “nas notícias falava-se de uma coluna militar que vinha a caminho de Lisboa, mas não mais do que isso”. Nesse dia foi brincar para a rua com os amigos, não tinha consciência do que estava a acontecer, pois sempre se habituara a cumprir as regras impostas no Liceu. “Havia muito respeitinho”. A consciência política ganhou-a no pós-25 de abril num período que considera ter sido de “liberdade desmesurada”, se terem cometido “muitos exageros” e ter sido “muito desperdiçado”.
Antónia foi uma das mulheres ativas que foi para o Liceu logo após o 25 de abril e bebeu desses excessos da liberdade. Pois que o balão que encheu tem de estoirar de forma ruidosa. Entre “faltas às aulas” e “programas por cumprir” muito se fez nas ruas, em comunicados permanentes, nas campanhas de alfabetização que “foram lindas mas resultados de uma coisa feíssima”. Foi uma época apaixonante, intensa e cheia de novidade.
À inquietude dos jovens do Liceu Padre António Vieira de finais dos anos 1960 e daqueles que viveram o biénio revolucionário seguir-se-iam outras lutas e inquietações. Hoje, o movimento estudantil enfrenta novos desafios e dificuldades sendo útil, para a sua atualidade, um olhar reflexivo sobre o passado recente que ajudou a construir a democracia.
(s.d.), "Intervalo", nº 7, Fundação Mário Soares / Isabel do Carmo/Carlos Antunes, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=09619.008 (2023-7-16)
Bibliografia consultada:
BEBIANO, Rui (2003). O poder da imaginação. Juventude, Rebeldia e Resistência nos Anos 60. Coimbra: Angelus Novus.
Primaveras Estudantis. Da crise de 1962 ao 25 de abril (2022). DGLAB: Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril
CARDINA, Miguel (2008). A tradição da contestação. Coimbra: Angelus Novus.
CARDINA, Miguel (2011). Margem de Certa Maneira. O Maoismo em Portugal 1964-1974. Lisboa: Tinta da China.
GOMES, M. Gomes e Ó, Jorge Ramos do (2023). A urgência da palavra impressa. A imprena dos «intrépidos adolescentes» contra a ditadura (1970-1974). Lisboa: Tigre de Papel.
OLIVEIRA, Luísa Tiago de (com Marta Silva) (2011). “O ativismo estudantil no IST (1945-1980)” in Visões do Técnico, no Centenário 1911-2011 disponível em http://hdl.handle.net/10071/4497
OLIVEIRA, Luísa Tiago de (2004). Estudantes e Povo na Revolução. O Serviço Cívico Estudantil (1974-1977). Oeiras: Celta
Juventude Inquieta - Projeto EDA ESPAV
Copyright © 2023 Projeto EDA ESPAV - Todos os direitos reservados.